Quarta-Feira, 30 de abril de 2025

Postado às 10h45 | 30 Abr 2025 | redação O Globo: entenda as disputas que levaram ao fim da trégua entre as facções CV e PCC

Crédito da foto: Rafael Ruas - Seap/ Sergio Lima - AFP Marcinho VP, um dos principais chefes do CV, e Marcola, que comando o PCC

O Globo

Quando foi informado por seu advogado sobre a proposta de trégua oferecida pelo Comando Vermelho (CV), Reinaldo Teixeira dos Santos, o Funchal, integrante da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC), afirmou ser a favor das tratativas, mas se mostrou preocupado. “Sabemos o quanto isso é complexo no contexto geral, porque temos que respeitar as regionalidades e a opinião de todos”, disse Funchal a seu defensor no parlatório da Penitenciária Federal de Brasília em janeiro, como mostra relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) obtido pelo GLOBO.

Dito e feito. O armistício sacramentado semanas depois pelos chefes das duas facções não durou muito: foram justamente as “regionalidades” citadas por Funchal que, em apenas dois meses, levaram ao fim do acordo de paz. Desde o início da semana, “salves” — como são chamados os comunicados do crime com orientações aos comparsas — contendo declarações mútuas de guerra passaram a ser interceptados por investigadores.

O principal motivo para a ruptura, segundo autoridades, são rixas locais que inviabilizaram o acordo costurado dentro das cadeias. Anunciado em um “salve” assinado por ambas as facções em 25 de fevereiro, o cessar-fogo não chegou às ruas de forma homogênea nem simultânea pelo país. Em estados como Mato Grosso do Sul e Acre, por exemplo, o tratado de paz teve reflexos claros na segurança pública. Já em outros, como Mato Grosso, Ceará e Bahia, a base das facções optou, desde o início, pelo prosseguimento da guerra.

Para o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, o rompimento se deve principalmente à dificuldade da implementação da trégua em quadrilhas com perfis organizacionais tão diferentes. O PCC tem hierarquia clara, estrutura piramidal rígida e uma cúpula que toma as decisões a serem seguidas por todos os membros — a desobediência pode ser punida até mesmo com expulsão e morte. Já o CV atua em um esquema semelhante ao de franquias nos diferentes estados, com lideranças regionais que possuem autonomia suficiente para não acatar o acordado pelos chefões do Rio.

— Em suma, interesses territoriais de disputa por tráfico levaram a esse rompimento. Ninguém quer abrir mão do seu espaço — afirma o promotor, que combate o PCC há duas décadas e é jurado de morte pela facção.

Ao contrário da trégua anunciada de forma conjunta, os “salves” que informam os integrantes sobre o rompimento, detectados desde anteontem, foram divulgados separadamente. O comunicado do PCC diz que o objetivo do acordo era reduzir os homicídios, que atrapalham os negócios, e expõe que ele chegou ao fim por “questões que ferem a ética do crime”.

Já o CV avisou que não mantém “mais qualquer aliança ou compromisso” com a quadrilha adversária. O texto alerta ainda que o assassinato de inocentes segue proibido, citando mortes recentes de jovens que fizeram sinais atribuídos às facções com as mãos.

Segundo Gakiya, outro fator a ser considerado é o fato de que a trégua não teria passado por Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, principal chefe do CV do Rio.

— O aval dele seria indispensável. Isso pode ter contribuído — sustenta o promotor.

Um relatório da Senappen produzido no fim de fevereiro a partir de visitas de advogados cita que Marcinho VP negou “de forma veemente” a existência de um acordo com o PCC e “reiterou que as facções permanecem como inimigas”. A proposta de trégua teria partido, segundo autoridades que investigam as facções, de advogados fluminenses ligados ao CV diretamente a integrantes da cúpula do grupo paulista, como Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e Reinaldo dos Santos, o Funchal.

 

Capturado e libertado

No Mato Grosso, onde o CV é dominante, houve um primeiro momento de indefinição, em que a cúpula local da facção determinou a suspensão “até segunda ordem” de ataques aos rivais. Em 17 de fevereiro, essa ordem salvou a vida de um jogador de futebol de 28 anos sequestrado enquanto jogava sinuca em um bar em Diamantino, a 182km de Cuiabá. Os criminosos encontraram no celular do atleta fotos em que ele fazia sinais com três dedos e acreditaram ser uma referência ao PCC. Ao longo de toda a madrugada, ele foi agredido e ameaçado pelo grupo, mesmo após negar ligação com qualquer facção.

A vítima só foi liberada de manhã. À polícia, o rapaz contou que seus algozes ligaram para um chefe do CV preso em Cuiabá pedindo aval para a execução, mas receberam a ordem de libertá-lo por conta das negociações em andamento.

Mais tarde, porém, a trégua foi descartada pelos chefes locais. Os conflitos retornaram com força, sobretudo em cidades onde a disputa já existia, como Sorriso, em meio à rota do tráfico de drogas e armas que entram no país via Bolívia.

Na Bahia, palco da maior ofensiva do CV na atualidade, o acordo também não interessou aos chefes regionais. Há pouco mais de dois anos, a facção quase não tinha presença no estado, mas cresceu absorvendo grupos locais. Hoje, ela predomina no Sul baiano e em boa parte de Salvador.

O cenário é semelhante no Ceará. Em meio a uma disputa violenta por territórios entre CV, PCC e a facção local Guardiões do Estado (GDE), o acordo sequer chegou a ter consequências palpáveis.

— Não houve nenhum ato concreto que pudesse confirmar, nenhum pedido judicial conjunto dos advogados, por exemplo. Por aqui, eles continuaram se matando — conta o promotor Adriano Saraiva, coordenador do Gaeco do Ministério Público do Ceará.

Um dos estados em que as consequências da trégua foram detectadas pelas autoridades foi o Mato Grosso do Sul, cruzado pelo principal corredor de distribuição de drogas e armas da América do Sul, conhecido como Rota Caipira. A partir dos primeiros “salves” que indicavam a aliança, as forças de segurança voltaram a apreender remessas de droga enviadas em consórcio pelas duas facções nas rodovias do estado — que, por quase uma década, foram monopolizadas pelo PCC.

Os pacotes de cocaína, maconha, haxixe e skunk passaram a ser embalados com diferentes cores, a depender da facção responsável pela remessa. Outro indicativo de que ali o acordo pegou foi o salto de 151% nas apreensões de droga nos três primeiros meses deste ano, em comparação ao mesmo período de 2024.

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